
15/09/2025
16:22
Mulher, jovem, indígena, mãe e ativista pelos direitos das mulheres e crianças, Eloisa usa a comunicação como ferramenta para defender grupos vulnerabilizados.
Com muitos marcadores para descrever quem é, Eloisa Graciliano encanta pela fala calma e segura ao contar a sua trajetória. Desde cedo, ela é dona da própria voz e aprendeu a usá-la para afirmar sua existência e ocupar os mais diversos espaços.
Ela nasceu em Palmeiras dos Índios, município no agreste de Alagoas, a 136 km da capital, Maceió. Sua etnia, Xukuru-Kariri, resulta da fusão entre os povos Xukuru e Kariri, ambos ainda presentes no Nordeste brasileiro. Pelo lado paterno, a família de Eloisa é da aldeia Wassu Cocal, localizada em Joaquim Gomes, na Zona da Mata alagoana. Também engajados nas causas indígenas e ambientais, seus familiares foram exemplo e inspiração, reforçando desde cedo o orgulho de suas raízes.
Ainda criança, Eloisa mudou-se para Maceió com a mãe e a avó. Ela cresceu na capital, mas nunca perdeu o vínculo com o lugar de onde veio. Vivendo entre duas realidades distintas — comunidade indígena e centro urbano — ela relata que por vezes se sentia atropelada pelo excesso de informação.
No bairro Trapiche da Barra, em Maceió, Eloisa cresceu ouvindo sua mãe, Elaine, falar sobre a importância de lutar pelos seus direitos. Ainda menina, começou a despertar para as questões sociais e ambientais. Preocupada com o futuro da filha, Elaine fazia questão de lembrá-la de que ela não só podia sonhar, mas também realizar. Costumava dizer: “Você é criança, mas é mulher. Tem que saber seus direitos, saber onde você pode chegar.”
Dentro de casa, foi apresentada ao feminismo e, desde cedo, entendeu que “ser mulher” no mundo significava muito mais do que as atribuições, responsabilidades e rótulos.
“Mulher na cidade, em qualquer lugar, é um desafio. A gente enfrenta questões de segurança, de acesso e de bem-estar. Homem pode andar por aí à vontade. Seguimos um estereótipo perigoso. Não é só a segurança física — tem também a mental, a emocional. A gente não é frágil, mas nos impõem essa fragilidade pelas condições em que nos colocam”.
As cidades, em sua maioria, não são projetadas para atender às necessidades das mulheres, o que acaba produzindo ambientes urbanos inseguros ou hostis. São inúmeros os desafios: mobilidade, acessibilidade, infraestrutura, segurança, entre outros. Eloisa, que mais tarde mudou-se sozinha para o Jacintinho, um bairro periférico de Maceió, vive na pele alguns desses problemas — tão comuns no cotidiano de mulheres brasileiras.
“Por exemplo, às dez da noite só tem um ônibus pra minha casa. E esse ônibus vem lotado de homens que estão voltando do trabalho, ou já beberam. Então eu só tenho essa opção: ou eu entro nele, ou espero — e isso pode ser mais perigoso ainda. As mulheres têm escolhas ruins e menos ruins.”
Sua criação feminista a ajudou a compreender que as mulheres também deveriam ter o direito de viver a cidade com segurança, sem que o medo seja o fator determinante de suas decisões. A partir daí, foi apenas um passo para aprofundar-se sobre outros marcadores que moldam a maneira como ela experiencia o mundo e a cidade.
Passou a se interessar cada vez mais por sua etnia e pelos direitos dos povos indígenas, compreendendo como essas questões estão profundamente ligadas à questão ambiental. Lutar por sua vida e por seu povo tornou-se, para ela, praticamente sinônimo de lutar por um meio ambiente saudável e preservado.
Eloisa, que sempre teve apreço pela fotografia, percebeu que poderia usar seu talento e gosto pessoal para abordar as temáticas que permeavam sua vida. Foi no final do Ensino Médio que a fotografia começou a assumir novos contornos e significados: a câmera, antes usada de forma mais descontraída para registrar uma realidade já marcada por problemas sociais e ambientais, passou a ser direcionada de maneira consciente para aquilo que ela sempre soube ser urgente evidenciar.
O que antes era apenas diversão tornou-se um instrumento de trabalho, capaz de amplificar a voz de Eloisa e das comunidades periféricas de Alagoas. A profissionalização da jovem como fotógrafa e comunicadora foi potencializada pelas oficinas do programa Digaê! – Juventudes, Comunicação e Cidade, iniciativa fruto da parceria entre o Governo de Alagoas e o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), realizada em colaboração com o Instituto Pólis e a Viração Educomunicação.
O programa fez parte do projeto Visão Alagoas 2030 e impactou mais de 80 jovens, de 15 a 24 anos residentes de 32 grotas (nomenclatura local para favelas localizadas em fundos de vale) de Maceió com formações em direito à cidade, experimentação midiática e intervenções comunitárias. O resultado desse processo foi sistematizado na Coletânea Memórias e Narrativas das Grotas de Maceió – pelo Olhar das Juventudes, que organiza o legado do Digaê! e evidencia a perspectiva das juventudes sobre suas histórias, lutas e conquistas.
Entre 2022 e 2023, Eloisa participou das formações em engajamento e mobilização comunitária. “Antes eu fazia por fazer. Era só diversão. Eu até tinha noção de direitos, mas não entendia de fato. Hoje entendo que é um dever. Algo que eu tenho que fazer. E entendo o porquê, onde quero chegar e onde posso chegar com isso. O Digaê! me amadureceu”, conta.
Durante o processo, Eloisa e outros jovens participantes do Digaê! tiveram contato com diferentes linguagens de comunicação — podcast, fotografia, vídeo, lambe-lambe, fanzine, grafite, entre outras. Ao final de cada ciclo, criaram produtos multimídia e propuseram intervenções para transformar suas comunidades.
Foi assim que nasceu o Coletivo Som, Imagem e Voz (SIV), coordenado por Eloisa e seus colegas. O nome carrega múltiplos significados: o som representa a sonoridade das cidades, tanto o barulho urbano quanto o do interior; as imagens remetem às fotografias que registram as memórias das pessoas; e a voz simboliza o que levam das comunidades periféricas para que outros possam escutar. “O SIV tem um grande significado. É o nosso lugar. Nossa mãozinha. Tudo”, diz Eloisa, ressaltando como a formação foi essencial para abrir novos horizontes às juventudes participantes.
“O Digaê! agregou muito. Não foi só um projeto temporário — ele gerou outros caminhos. Hoje tem muitos jovens na comunicação por causa do Digaê!. Esperamos que abram mais portas para que mais jovens tenham acesso, e que os que passaram por ele possam continuar.”
Mesmo após o fim das oficinas, o Coletivo SIV continua ativo, usando a comunicação para abordar temas como o direito à cidade e questões ambientais. O grupo tem conquistado espaço em diferentes estados e, segundo Eloisa, já está expandindo suas atividades para a Bahia.
A formação do Digaê! proporcionou a Eloisa novas ferramentas para refletir sobre o direito à cidade. Com base em suas experiências pessoais e profissionais, ela destaca um ponto crucial: o direito à cidade ainda é bastante limitado para mulheres e crianças.
Seu especial interesse pelas questões relacionadas à primeira infância vem de sua experiência com a maternidade. Eloisa deu à luz seu filho Joaquim durante a participação no Digaê!. Embora ele tenha vivido apenas um dia, transformou-a para sempre. Ser mãe muda o olhar de quem vê e de quem vive a cidade — e com Eloisa não foi diferente.
“Meu filho não está aqui, mas não quero que outras mães passem pelo que eu passei. Quero que os filhos delas cresçam — e cresçam com consciência. Que saibam seus direitos, seus deveres, que sejam cidadãos. Que possam brincar na praça, estudar, viver dignamente. Meu filho é minha alavanca. Tudo o que eu faço hoje é por ele. Mesmo que ele não esteja aqui, é por ele. Para que o mundo seja melhor para outras crianças também.”
A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável reconhece o direito das crianças à cidade como parte do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 11, que busca tornar as cidades inclusivas, seguras, resilientes e sustentáveis. Eloisa reflete sobre os desafios e obstáculos que envolvem o direito à cidade, destacando seu impacto sobre crianças, adolescentes e mulheres, e aponta que ainda há um longo caminho a percorrer, já que muitas cidades não são planejadas para atender plenamente quem mais precisa de infraestrutura.
“Um dos mais visíveis é a calçada. Ela deveria ser pensada não só para mães com carrinho, mas para pessoas que usam cadeiras de rodas, para pessoas com deficiência visual. Pisos quebrados, falta de acessibilidade — isso afeta todo mundo. Falando de infraestrutura: já aconteceu de mulheres andarem com o carrinho de bebê na rua porque a calçada é impossível.”
Eloisa nos lembra que é possível lutar por múltiplas causas sem perder de vista o essencial: a cidade deve ser um espaço para todas as pessoas: onde seja possível existir, circular e viver com dignidade.
“Todo mundo fala de cidade como lugar de ir e vir. Mas não é só isso. Você tem direito a uma cidade de qualidade. Tem direito a descanso de qualidade. Porque você acorda às cinco da manhã, pega ônibus lotado, chega no trabalho às oito – você passa mais tempo fora de casa do que dentro. Então o direito à cidade engloba tudo. O direito à cidade é a vida. E você ter o direito de viver, resumidamente. Foi isso que eu aprendi no Digaê!.”
Cidades de qualidade são construídas considerando quem as habita e o território que ocupam. Questões de gênero, direitos das crianças, proteção de povos tradicionais, justiça climática e preservação ambiental são pautas que caminham juntas e se reforçam mutuamente.
Uma cidade justa é aquela que acolhe todos os grupos, em especial crianças, mulheres, juventudes e povos indígenas, promovendo segurança, bem-estar, equidade e oportunidades iguais para todas as pessoas.
Jovens como Eloisa lembram que o futuro das cidades depende da participação e da atuação consciente de quem as habita, construindo espaços urbanos mais inclusivos e sustentáveis para todas as pessoas, em todas as fases da vida.
Para saber mais, siga @onuhabitatbrasil nas redes e visite a página do Visão Alagoas 2030: https://visaoalagoas2030.al.gov.br/